7.22.2006

Noite de luar bolor


©mra

"O que mais admiro nos homens (e o que neles mais me desgosta também) é a sua extraordinária capacidade de resistir à monotonia da realidade - às vezes tão medíocre que nem deveria merecer a honra de lhe chamarmos realidade.

Aqui entre nós, gaita para as mesmas flores!, para a chuva repetida!, para o Sol igual!, para os fatos idênticos, amanhã, depois de amanhã, daqui a um século, pela eternidade fora - ora bolas!

Até hoje - e já não sou criança - ainda não encontrei ninguém que se insurgisse contra este escalque de coisa nenhuma a papel químico. Ou que se increspasse com mau humor de vulcão chateado, a desabafar:

- Apre! Estou farto destas árvores! Arranje-me outras, depressa! Árvores voadoras, por exemplo. Com raízes nas nuvens...

Pelo contrário: a realidade chocha não lhes basta. Exigem-na também encaixilhada, em tal qual, nas pinturas, nos romances, nas peças, nos filmes...Não percebem que, para os artistas verdadeiros, este famoso mundo não passa dum caos-tema para variações de novos deslindes e astros diversos.

E que uma das mais transcendentes missões sociais da Arte seria essa luta contra a monotonia, que concede aos homens a faculdade de transformar a natureza, modificar as leis eternas, pôr tudo do avesso e dar um pouco de férias revoltas ao tédio organizado em que vivemos.

Eu, pelo menos, quando me sinto cansado dos pêndulos dos relógios, da injustiça, dos automóveis, do bater dos corações, do vento, dos satélites, dos astronautas, das plantas sempre verdes, dos telhados sempre vermelhos, dos homens sempre com cabeça, tronco e membros, recorro aos poetas. Procuro neles a ilusão de outra lógica. Imagino-me na cidade-em-que-as-ruas-arrombam-as-casa e os cavalos correm com mil pernas azuis. Deliro a sonhar o meu retrato com asas. Enlouqueço, em suma, provisoriamente, que é ainda a maneira mais cómoda de repousar.

Agora mesmo, por exemplo, abri a janela e olhei para o céu.

Lá estava a Lua, a tonta! A Lua bolorenta que ninguém estoira com dinamite ou atravessa com flechas. A Lua redonda.

Fechei a janela com furor.

E sentei-me à mesa a desenhar uma paisagem nocturna, saudosamente ilumonada por uma Lua quadrada."


José Gomes Ferreira
(in "Imitação dos Dias")